Se tem uma coisa difícil de acreditar é em meritocracia, um conceito tão presente em nossa realidade e que volta e meia vira o assunto do momento para debates.
E mais do que nunca, este período que estamos vivendo traz à tona este tema, principalmente quando se fala em carreiras nas empresas.
Segundo o dicionário Michaelis, meritocracia pode ser definida como uma forma de administração cujos cargos são conquistados segundo o merecimento, em que há o predomínio do conhecimento e da competência.
A partir dessa definição é possível começar a entender que esse tipo de discurso não condiz com a nossa realidade, e que a meritocracia privilegia aqueles que já tiveram oportunidades, ou seja, quem já nasceu rico.
Para entender melhor sobre este assunto, vamos falar um pouco sobre o cenário da população brasileira e entender porque a meritocracia é uma falácia e não funciona nas empresas.
A meritocracia na teoria
A palavra meritocracia tem sua origem etimológica do latim e também do grego. Mérito vem da palavra meritum, e cracia vem do grego, que significa poder, o que podemos definir como “poder do mérito”.
O que podemos identificar com esta terminologia é que a palavra meritocracia define, como base para o sucesso profissional, o esforço e dedicação individual. Pois somente com trabalho individual é possível “subir” na carreira.
A meritocracia trabalha com posições hierárquicas, onde quanto mais alto o cargo mais o indivíduo se esforçou para estar ali.
Isto é, é necessário ter a melhor educação, melhores perfis técnico e profissional que sejam específicos para aquela área.
Este sistema é muito utilizado em empresas privadas, como forma de reconhecimento de um bom desempenho.
Eles valorizam os profissionais por meio de aumento salarial, oferta de cargos acima e também premiam de outras formas, como viagens.
A meritocracia é utilizada para motivar os colaboradores, para que eles sempre estejam em busca do melhor.
Mas eu pergunto para você, como ter um sistema meritocrático sendo que não partimos do mesmo lugar?
Que mais de 50% da população não tem acesso à educação de qualidade, que é a base para conseguir “competir” por uma vaga.
Neste vídeo, o Gui Nery, da Marketing de Crescimento, e seu convidado Reury Fidelis, abordam o tema de forma sucinta com assuntos atuais e essenciais para o meio empresarial.
Para aprofundarmos melhor neste tema, vamos para o próximo tópico para entendermos a desigualdade social que assola nosso país, e como a meritocracia é algo apenas para os que tiveram melhores oportunidades.
O reflexo da desigualdade social no mercado de trabalho
Acreditar que é possível uma pessoa alcançar a posição de trabalho que ela deseja apenas por seu mérito, é a mesma coisa que acreditar que todos nós partimos do mesmo lugar para realizar este feito.
O que não é verdade, porque o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, e para provar esta afirmação, basta fazer uma rápida pesquisa na internet.
Segundo o IBGE, no ano de 2018, a concentração de renda aumentou. Isso quer dizer que 1% da população que é considerada rica, aumentou sua renda em 8%. Já a população mais pobre, diminuiu sua renda em 3%.
Não é à toa que o Brasil está em segundo lugar quando o assunto é a concentração de renda, ficando atrás somente do Catar.
Infelizmente a má distribuição de renda é um problema sistêmico e ela reflete na busca de qualificação e posição no mercado de trabalho.
Neste caso, estou falando apenas da desigualdade relacionada à renda. Quando este grupo é subdividido pela cor da pele, a realidade é ainda mais cruel.
No ano de 2016, o Instituto Ethos realizou uma pesquisa que identificou que apenas 4,7% dos cargos executivos das 500 maiores empresas brasileiras são ocupados por negros.
O reflexo da desigualdade no mercado de trabalho também pode ser visto nos dados abaixo analisados pelo IBGE, que mostram que mais da metade dos cargos de gerência, no ano de 2018, eram ocupados por brancos.
Outro fato é o número de pessoas pretas ou pardas em situação de subutilização — população desempregada, empregada mas com insuficiência de horas e pessoas que estão desocupadas mas tem potencial para ser força de trabalho — neste caso, maior que o número de pessoas brancas.
E pasmem: mesmo com um nível de escolarização melhor que muitos anos atrás, ainda assim a população negra não conseguiu se equiparar às pessoas brancas.
O quadro abaixo, também com base na pesquisa realizada pelo IBGE, pode afirmar isso:
Estes gráficos nos mostram que mesmo com índice de escolaridade, o número de pessoas negras em situação de subutilização é maior que o número de pessoas brancas.
Mas o que esses dados tem a ver com a meritocracia? Eles têm tudo a ver com esse conceito que é mal empregado em ambientes de trabalho.
Por meio desses dados é possível identificar que a população negra nunca teve as mesmas oportunidades que pessoas brancas, e que devido essa vulnerabilidade histórica/social, será necessário muito anos para ser alcançado a equidade racial.
Tudo isso se deve ao passado sombrio do período de escravidão que tivemos e até os dias atuais refletem em nossa sociedade em várias esferas.
Mesmo após a abolição, a população negra continuou sendo marginalizada, não tinha acesso a empregos dignos, educação, moradia, entre muitos outros fatores que nos deixam para trás social e economicamente, até tempo atual.
Por isso é tão falado em reparação histórica, que deve ser feita com o auxílio de ações afirmativas para diminuir esse abismo social.
A meritocracia leva a exceção como regra
Não é raro escutar por aí que fulano empreendeu e alcançou um outro patamar, e que se ele conseguiu todos conseguem, porque isso está ligado a falta de esforço e não de oportunidades.
E esse discurso é reforçado quando se trata de pessoas negras, como se elas se esforçassem menos para ter uma cargo melhor, um emprego mais digno.
O que ouvimos por aí é que isso é vitimização. Difícil ouvir isso quando já passou por essa situação e ainda tem dados que comprovam, não é? Ainda mais porque a nossa estrutura de sociedade é racista.
Para ficar mais entendível o que eu disse, vou contar um pouco a história de três pessoas conhecidas — de áreas diferentes — que tem as suas vidas utilizadas como exemplos de superação.
Joaquim Barbosa, ex-presidente do STF
O primeiro exemplo, e muito conhecido, é o ex-presidente do STF, Joaquim Barbosa. A sua história de vida é aquela que as pessoas usam como exemplo de que se esforçar é possível conseguir tudo que almeja.
A vida dele não foi nada fácil, como grande parte dos brasileiros, ajudava o pai que era pedreiro e depois começou a trabalhar como faxineiro, quando se mudaram para Brasília.
Depois disso, iniciou o trabalho de datilógrafo para o jornal do Senado, e enquanto trabalhava passou no vestibular da UNB — Universidade de Brasília — para o curso de Direito.
Como tinha facilidade com idiomas, era poliglota, e com essa habilidade, passou no concurso para atuar no ministério das relações exteriores, foi para a embaixada de Helsinki.
Também foi professor visitante, passou no concurso de procurador da república e seu nome foi cotado para ser ministro do STF, logo após, tornou-se presidente do supremo.
Rick Chesther, o fenômeno do empreendedorismo
Outra história que ficou muito famosa é a do “vendedor de água” Rick Chesther, que virou um fenômeno na internet após postar este vídeo de um minuto ensinando como fazer dinheiro vendendo água.
O Rick vendia água em Copacabana e, segundo ele, fez esse vídeo depois de ter conversado com alguns turistas na praia. Chegou em casa, postou o vídeo e no outro dia viu as proporções que a sua dica tomou.
Foi a partir daí que sua vida mudou por completo, muitas oportunidades surgiram, como a de palestrar em Harvard. Atualmente, ele é autor de dois livros que falam sobre a temática do empreendedorismo.
À procura da felicidade, a história de Chris Gardner
Outra história de superação que é utilizada como exemplo para a meritocracia, é a retratada no filme “À Procura da Felicidade“, onde Will Smith interpreta o período sofrido da vida de Chris Gardner.
Chris Gardner passou um tempo morando na rua com seu filho, de apenas 14 meses, que é retratado no filme como uma criança de 5 anos. Eles passaram por todo o tipo de situação possível e conseguiram sair bem dessa situação.
O que está por trás disso tudo é a romantização da situação de cada um deles, mesmo de formas diferentes, passaram por momentos muito difíceis e mesmo assim, obtiveram o sucesso. E, por esse motivo, eles são utilizados como regra.
A afirmação é que outras pessoas negras estão nessa situação porque querem. E não é bem assim, até porque contra fatos não há argumentos, e o que mais se tem são fatos para comprovar.
Afinal, histórias de superação vendem muito bem para quem acredita no discurso da meritocracia, principalmente quando os protagonistas são negros.
Ações afirmativas como forma de reparação histórica
As ações afirmativas podem ser definidas como um artifício para suprir a desigualdade, ou seja, são a peça chave para a busca da reparação de grupos minoritários. Essas ações podem ser aplicadas em várias vertentes como a de gênero e a racial.
É possível identificá-las tanto na educação, com as cotas, por exemplo, quanto no ambiente de trabalho com projetos, cursos e outros tipos de incentivos que podem ser oferecidos pelas empresas.
Apesar de existirem muitas ações tanto por parte do governo quanto por parte de empresas, ainda está muito aquém do que é considerado ideal.
Isso porque mudar totalmente uma estrutura é um trabalho difícil e precisa ter interessados — principalmente pessoas em cargos de influência — para isso.
Um exemplo super atual sobre medidas afirmativas é a ação movimentada pela magalu, que foi uma das empresas mais comentadas neste segundo semestre de 2020. Tudo pelo fato de lançarem um programa de trainee exclusivo para negros.
Muitas pessoas foram contra, e até disseram que isso seria racismo reverso — que não existe, pois a sociedade que sofre racismo é aquela que sofreu algum processo exploratório por conta da raça —, inclusive o termo foi muito pesquisado no Google, logo após a empresa apresentar o programa para trainees.
Se você conhece alguém que acredita em racismo reverso, envie o link deste episódio do Infiltrados no Cast: O Manual do Racismo Reverso
Ao fazer uma pesquisa no Google Trends sobre o termo racismo reverso, é possível identificar que houve maior procura próximo a data em que o programa da Magalu foi divulgado.
O gráfico mostra que nos dias 20 e 21 de setembro foram as datas em que mais o assunto foi pesquisado, e ao vermos os termos relacionados, houve um aumento repentino sobre a busca do termo trainee.
O processo de seleção mais humanizado não é novidade no Magalu, isso porque antes de criarem o trainee voltado para pessoas negras, o critério de seleção dos programas da empresa era justamente fazer o processo seletivo às cegas.
Isto é, focar primeiramente nos valores de cada candidato, bem como seus aspectos comportamentais, e como a própria empresa define: pelo “fit cultural”.
No processo de seleção os recrutadores não sabem o curso, nem características sociais e muito menos o gênero de cada participante.
No ano de 2020, devido a intensificação do movimento Black Lives Matter (BLM), depois da morte de George Floyd, ocasionado por um policial branco, as pessoas tiveram seus olhares voltados para a luta antirracista, que ganhou mais visibilidade, principalmente aqui no Brasil.
Claro que em concomitância com este ato de violência policial, em nosso país aconteceram — e ainda acontecem — várias situações deploráveis, o que ajudou a colocar em pauta este assunto tão forte e importante.
Por isso, ter esse olhar para a desigualdade entre pessoas brancas e negras é um viés muito mais significativo e foi justamente por esse motivo que a Magalu lançou este programa de trainees exclusivo para pessoas negras.
Confira abaixo o manifesto da empresa que explica o porquê de criar este programa:
Após essa ação inédita, muitas outras empresas estão abrindo os bancos de talentos para a diversidade, e vagas voltadas para pessoas negras.
Acredito que é necessário dar o primeiro passo para que outras empresas entendam que seus processos são excludentes e quando é voltado para a diversidade, não prezam por pessoas negras, pois ainda assim eles não fazem o recorte racial.
Até porque são necessárias muitas gerações para uma família no Brasil alcançar a renda média da população.
Os dados desse tweet são reais, com base em pesquisas realizadas pelo Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social.
Como funciona a meritocracia na prática em uma empresa
Dentro da maioria das empresas, as pessoas são vistas como expostas às mesmas oportunidades, e por isso, são avaliadas da mesma forma.
O que norteia a gestão de pessoas, neste caso, é a avaliação de desempenho que é aplicada em seus funcionários.
Com ela, é possível analisar as competências técnicas e comportamentais de forma individual ou em equipes. Essa avaliação é realizadas em alguns períodos, justamente para ter um intervalo de tempo para observação.
Com as avaliações é possível identificar os funcionários que se destacam em seus cargos e que merecem um benefício por isso, seja uma promoção no cargo, salarial ou outras formas que contemplem o funcionário.
Nem sempre esses tipos de avaliação são feitos da forma correta, isso porque é analisado somente o perfil técnico, além de ser analisado de uma forma generalizada. Como a análise em equipe.
Esses sistemas de avaliação tornam difícil a compreensão do desenvolvimento de cada funcionário, sem contar que avaliações técnicas tornam o processo totalmente frio.
O perfil técnico é exigido desde o primeiro contato do indivíduo com a empresa, ou seja, o processo seletivo.
São muitos os requisitos que as empresas exigem, e muitos deles excluem pessoas com grande potencial — experiência no exterior, inglês e outro idioma fluentes, e por aí vai, a lista é enorme.
São pessoas com ótimos valores, que é justamente o perfil que essas organizações procuram. Entretanto, elas não cumprem os requisitos necessários.
Os benefícios em definir outros atributos para avaliação de desempenho
Todos concordamos que as oportunidades devem ser as mesmas, não é mesmo? Infelizmente isso não é possível devido às faltas de oportunidades — que já expliquei mais acima — para a maior parte da população brasileira.
Mesmo com a criação de vagas específicas, as empresas precisam mudar a forma do processo seletivo e também a de avaliação de desempenho dos funcionários.
Para chegarmos a essa ideia de igualdade, as ações afirmativas são essenciais. Por isso, elas devem fazer parte do meio laboral.
Para isso, vamos conhecer os outros atributos que vão além da avaliação técnica e só tem a somar com as políticas da empresa:
Valores
As pessoas vão muito além do perfil técnico, e seus valores podem contar muito mais do que o currículo. Isso porque cada um tem uma vivência diferente e por essa razão carregam valores distintos.
Esse processo de avaliação já começa no momento da divulgação da vaga e da seleção, por isso, o ideal é criar um perfil de vaga que tenha o foco voltado para os valores individuais.
Pois assim é possível identificar se o perfil desta pessoa se encaixa com o que é procurado pela empresa, as habilidade técnicas podem ser ensinadas depois.
Disposição para lidar com as adversidades
Geralmente a realidade de pessoas negras e de baixa renda é totalmente diferente daqueles que concorrem normalmente para essas vagas ou já estão em cargos importantes.
Dessa forma, as chances dessas pessoas conseguirem contornar situações adversas são muito maiores devido às vivências diárias, isso contribui positivamente para a empresa.
Pontos de vista distintos
Outro fator para ser levado em consideração é os pontos de vista diferentes. Isso acontece devido as vivências diferentes, que traz outros olhares e perspectivas para o trabalho.
Para auxiliar na construção de uma equipe mais diversa, as empresas têm criado comitês da diversidade, é um passo importante para buscar melhorias, pois as pessoas que o compõe são justamente as que a sociedade excluem — as minorias.
Ter mais pessoas negras ocupando cargos melhores é a base da representatividade, para aqueles que querem esses postos.
Ter pessoas que inspiram, nesses lugares, é importante para as pessoas pretas, por isso as ações afirmativas precisam ser realidade de todas as empresas.